sábado, 14 de abril de 2012

Crônica do cotidiano no Jd. Lapenna - Escrita pelo Cometa

Compartilho esses momentos ao lado de Dona Antonia com vcs...



Enquanto isso em São Miguel - Jd. lapenna...


Encontrar Dona Antonia, mãe de Flávia e Flaviane, jovens que conhecemos no Galpão de Cultura e Cidadania, avó também da menina Eduarda, é sempre um aprendizado.



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011





A sabedoria de Dona Antonia sobre os jovens e a vida


"O ser humano sabe que há outros seres que a ele se assemelham e aos quais poderá comunicar os sentimentos que experimenta, desde que os situe nas circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres. Assim que ele conhece o que o comoveu, ele pode se exercitar e comover os outros, se estuda a escolha e o emprego dos meios de comunicação. É uma língua que ele deve aprender”.

Jacques Ranciére




Manhã de sol. O córrego do Lapenna exala o cheiro do extrato da cidade. Em meio aos efluentes advindos das indústrias que margeiam o Tietê, desde um pouco depois de Salesópolis, Mogi das Cruzes e, ao adentrar São Paulo, apesar da sinuosidade nem parece rio, somente na literatura e seus jogos de aliteração poética insistem em trazer à memória do narrador que se trata de um rio; pássaro Tiê, Tiê, mais Anhembi, Anhembi, água, água, numa quase melodia provoca outros sentidos e busca a afetividade e o entrelaçamento desse tecido vivo de histórias diversas e identidades.

Dentro desse espaço geográfico, Dona Antonia surge na viela que une a rua Almiro dos Reis com a Travessa Berigan. Passagem estreita, é verdade, mas como ela bem diz: “estreito também é o caminho desse mundão – cidade e a gente se espreme para poder atravessar esse mar Morto” – proclama Dona Antonia com o evangelho debaixo do braço, num desabafo misturado com oração. Como narrador nesse espaço de ler e ouvir, vivo, nesses últimos dias, com meus parceiros dessa lida de pensar, fazer, educar e ser educado, a definição de prioridades e impactos desejados, do que julgamos ser melhor para essa gente ribeirinha por necessidade, que vive as vulnerabilidades, sem ter condições de olhar com tempo e nem com todo o aprofundamento necessário para o que vive.

Sim, estive recentemente lá pelas bandas do Pacaembu, onde ouvi os pássaros a anunciar a chuva e imaginar pacas bebendo no rio, ou melhor, no veio d’água escondido debaixo do asfalto em que passam carros e nos dias de jogos passa torcida organizada, percebo que nossas asas estão livres para voar, porém nossos vôos precisam ser mais dirigidos, mais curtos, assim temos mais tempo para partilhar e convencer outros a aprender e voar nas rotas inerentes à nossa missão de voar e fazer voar e pensar numa nova forma de viver junto... Um sabiá solta o seu canto. Dona Antonia me convida, agora por aqui no Lapenna, para um café. Ela tem pela gente do Galpão um grande apreço. É que Flaviane e Flávia passaram dois anos no Galpão de Cultura e Cidadania juntamente com outros jovens e isso segundo ela fez muita diferença na vida delas. Dona Antonia diz que deveria existir muitos outros Galpões por ai.

“Essas meninas já estão no meio da travessia desse mundão que é essa cidade, estudando e trabalhando e pensando nos outros, em fazer o bem, isso é tão raro se ver”, não é verdade?” – indaga Dona Antonia coando o café. “O senhor vê, essa cidade côa as gentes. Olha aqui embaixo o que passou. O pó fica todo enlameado no coador, a sobra, sobrou e a gente joga esse borrão fora” – metaforiza Dona Antonia.

Aos poucos percebo, até no silêncio que se faz para saborear o café, que muitas vezes corremos o risco de fazer leituras enviesadas sobre o lugar. Leituras que, na tentativa de definir conceitos ou até mesmo um panorama social, só conhecemos efetivamente quando vivemos a experiência de uma escuta livre sobre as relações, formas e modos de viver nessas terras ribeirinhas, ou em tantos outros lugares, onde o rio é asfalto, e o asfalto é rio, nos morros, enfim, cada qual com identidades e singularidades coletivas e individuais.


Dona Antonia diz que perdeu o marido. A casa pequena, porém organizada, na porta uma mureta – barragem que impede um desconforto maior nos dias de “chuvarada das danada, em que até Arcanjo Miguel abre o guarda-chuva”, como lembra Dona Antonia da frase da católica Dona Glória. “Todo mundo fica igual, seja crente, seja católico, com água até a cintura. Deus quase desaparece e a gente vê refletida nossa esperança, nas águas que Deus tratou de mandar” – profetiza Dona Antonia.

Indago sobre o que prejudica a vida dos jovens, o que os enfraquecem e ela responde: “não o jovem não é fraco, ele é levado. Olha, lá no rio São Francisco, quem leva o jovem ou a jovem é mãe d’água, só que de outro jeito, outra história, outros significados, apesar de que lá tem muita miséria. Aqui parece com enchente de ambição. Não podem ver essas coisas, tranqueiras de usar, vestir e divertir, que já sai querendo tudo, sem às vezes ter necessidade.


Mas e nós Dona Antonia, os adultos?

- Nós adultos também não agimos diferente, não paramos de querer mais, fazemos tanto lixo, desperdiçamos tanto. Acho que nós criamos um cobreiro na pele do mundo, que já entrou nos órgãos da terra. Precisamos ter consciência, curar as feridas e parar de ferir. Como consumimos sem consciência!

Claro – profere Dona Antonia, 57 anos, moradora do Jardim Lapenna – que o jovem daqui sabe diferenciar e tem sabedoria para escolher, mas essa febre de ser aquilo que dizem para que todos sejam. Comer essas tranqueiras que estão na televisão, se vestir igual com esses tecidos de petróleo... Parece uma enchente que leva em suas águas a juventude, sobretudo os mais pobres, a muitas vezes afundar ou se perder nessas profundezas de tudo igual, fica sem o que a pessoa é, entra no enxame, só para dizer que ta dentro, mas nem sabe o que tá fazendo dentro.”

Entre alguns “uais”, interjeições e palavreado mineiro, Dona Antonia olha para a bíblia sorrateiramente e, após pigarrear, compondo experiência com propriedade, se refere à escola do lugar como muito distante dos jovens, como ela diz “parece que a escola está em outra vila”.

“Os jovens não estão na escola e nem na comunidade, aqui do lugar. Eu sei que eles podem estar em tantos lugares como coisas da internet, telefone sem fio e outros transporte de som e luz, conheci isso quando fiz um curso no Galpão sobre a comunicação, mas eles, os jovens, têm que estar aqui também, sabe, lutando e ajudando pelas melhorias da escola e do lugar. Afinal, tudo é uma coisa só. Uai, a casa não está na rua do bairro, junto com a escola que está aqui na Vila, e a Vila, as ruas, a casa não estão dentro da cidade, e a cidade não está dentro do estado, e daí dentro do país, da América, do mundo?... Ai que saudade de Minhas Gerais” – lembra Dona Antonia.

“Sabe quando vejo as escolas reunidas no Galpão, as crianças e os professores lendo, os jovens e os adultos cantando, tocando instrumentos, as meninas filmando, penso, olha só, ai tem um caminho. Minhas filhas trabalhando, escrevem bem, aprenderam tanta coisa, só vendo. Acho que é possível mudar, foi que você perguntou, não foi, Cometa?”

- Foi sim Dona Antonia, aprendi muito. Nossa ! preciso voltar para o Galpão. Vamos prosear mais num outro dia?

- Claro, casa de mineiro - paulista sempre ta aberta. Ah, vem ver, antes de ir embora a Eduarda, filha de Flávia, ela está linda.

José Luiz Adeve - Cometa





Um comentário:

  1. Muito lindo! Não tinha como não publicar... Parabéns Cometa e obrigada por compartilhar conosco tanta poesia e sensibilidade.

    Abraços

    Marli Viana

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